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quarta-feira, 24 de julho de 2019

A LENDA DA BONECA DO MUSEU

Lenci, a boneca do museu

Conheci a lenda da boneca do museu por ouvir falar. Não lembro bem onde, nem quando. Lendas a gente ouve um pedaço aqui, outro ali e vai juntando as partes até formar uma história que faça sentido. Ou que não faça. Dizem (repare que o sujeito é indefinido, como todo bom mistério deve ser) que ela caminha no museu à noite. Dizem também que ela se mexe quando você não vê. Dizem que ela pisca se você encará-la, algo que não é muito inteligente de fazer de acordo com o manual das vítimas de filmes de terror com bonecos endemoniados.

Imagino que alguns elementos contribuíram para o surgimento da lenda em torno da boneca. O fato de a boneca possuir um rosto sério e não muito simpático. O modelo da boneca era comum na época em que foi criada, na década de 1920, no auge do estilo Art Déco. O modelo foi criado para concorrer com as bonecas de pano que dominavam o mercado.

Lydia Moschetti
A boneca foi um prêmio vencido por Lydia Moschetti em um concurso de cantores de ópera durante uma viagem à Itália por volta de 1937. Hoje, com aproximadamente 82 anos, ela está se deteriorando e necessita de restauro. O vestido está se desfazendo e o corpo, feito de cerâmica, está rachando.

Rafes: tentativas até a versão ideal

O fato da boneca ser grande e pesada. Criada, montada e pintada de forma artesanal, ela é feita de louça com altura de aproximadamente 1,20m. Não é uma boneca que se encontra na loja da esquina. Para a imaginação amedrontada, se a boneca ganhar vida, ela se torna um personagem assustador.

O fato de a boneca ter uma história (basicamente oral) relacionada a sua origem. E talvez também o fato da sua proprietária já ter falecido aumenta a ilusão do mistério.

O fato de a boneca ficar em uma sala isolada, oferecendo a ideia de que, a qualquer momento, ele pode se levantar e avançar sobre os visitantes (pra um abraço, claro!). O isolamento indica ao visitante para que ele mantenha distância da boneca e isso confirma os medos que ele alimenta.

O fato de o museu ser uma casa antiga, não muito bem iluminada, com móveis antigos e decoração estilo colonial cria um clima assombrado. Pra quem já entra impressionado, a coisa vai se agravando a cada cômodo visitado. 

L.E.N.C.I.


O nome vem da marca do fabricante italiano: Ludus Est Nobis Constanter Industria. Fundada no ano de 1919 em Turim, a empresa foi pioneira na fabricação e bonecas de cerâmica na tentativa de fugir da concorrência das bonecas de pano da época.

Outras bonecas produzidas pela mesma empresa
A empresa também fabricava brinquedos, bonecas, fantoches, pacotes, roupas, enfeites para roupas, xales, travesseiros, chapéus, sapatos, chinelos, cintos, artigos de moda e fantasia, cortinas, móveis de madeira dourada e artigos de decoração.

Outros modelos de boneca
As bonecas Lenci não só reproduzem crianças, muitas vezes com um rosto carrancudo como o famoso "grugnetto", mas também figuras com trajes regionais ou étnicos, roupas ou máscaras da moda e personagens fictícios ou inspirados em modelos reais, como Rodolfo Valentino e Josephine Baker. A vasta coleção de bonecas variava de itens de brinquedos destinados ao mundo da infância a bonecas colecionáveis refinadas, algumas das quais tinham o rosto de Marlene Dietrich. (Fonte: https://it.wikipedia.org/wiki/Lenci_(azienda))

(Fonte das fotos da bonecas: https://br.pinterest.com/jeanmccarthy72/lenci/)
(https://br.pinterest.com/pin/AdcPkbjPfz9O9_IIRuX4wn350tS8u4AxUx-B6DP8jSlcTL64VoXTgYQ/)





terça-feira, 23 de julho de 2019

A criação da capa e a escolha do tema

Capa e rafe do segundo número de Assim na Serra Como no Céu

Levei tempo para chegar até este resultado. A escolha da boneca como personagem principal demorou além do que eu esperava. Agora, esta decisão parece fazer sentido, mas não era a ideia inicial. O problema era o seguinte: eu queria manter a mesma proposta da capa do primeiro número, ou seja, apenas um elemento que representasse todo o livro. Como este segundo número possui 4 histórias independentes (e não uma história única como no primeiro número), a ideia inicial era um desenho que trouxesse elementos das 4 histórias.

Agrupei todos os principais personagens do livro
O problema neste caso era a quantidade elevada de elementos na capa: 1 para cada história e mais 1 elemento central interligando-os. O fato de ter criado a primeira história sobre a igreja, que me foi contada pelo meu avô, me levou a coloca-lo em todas as histórias, numa espécie de padrão Hitchcock de narrativa. Me pareceu lógico, então, colocá-lo como centro das atenções (e como homenagem também) envolvido com as 4 histórias. Mas os desenhos que desenvolvi não me agradaram. Eram elementos demais se comparados ao primeiro número.

A "caricartoon" do meu avô aparece em todas as histórias
Pensei então em colocá-lo sozinho na capa, correndo, fugindo dos elementos aterrorizantes das histórias que estavam por vir. Os vários elementos das histórias ficariam na capa 4, atrás do livro. Era então preciso que o leitor virasse o livro para que entendesse do que o personagem fugia. A ideia me pareceu melhor que as outras, mas fugia do padrão do primeiro número. E isto eu não queria.

Rafe da tentativa de colocar um objeto turístico da cidade na capa

Gôndola italiana da Praça da Imigração em Nova Milano

A ideia seguinte foi seguir a regra (regra?) de destacar um ponto turístico da cidade como elemento ou como detalhe na capa e valoriza-lo na capa 2, como fiz com a obra do Centenário da Imigração Italiana no Rio Grande do Sul no primeiro número. Tentei a gôndola de Nova Milano e o leão da Praça da Imigração Italiana, mas senti que ainda não era isso que eu queria. O dilema era o seguinte: se colocasse o elemento no centro das atenções, sendo o leão ou a gôndola, ainda assim teria que colocar 4 personagens (1 de cada história) para estabelecer uma ligação. Caso contrário, estes elementos turísticos ficariam perdidos e sem ligação com os temas das histórias. E isso ocasionaria um acúmulo de informações na capa. Ainda não era isso.

Ainda vou usar este leão para outra história

Leão alado na Praça da Imigração em Nova Milano

A saída foi buscar outra ideia. Abandonei a ideia de apresentar os 4 elementos das histórias e deixei as ideias fermentando na minha cabeça por um mês mais ou menos. Com o tempo, entendi que a boneca Lenci do Museu Municipal também era um produto turístico assim como a obra do Centenário da Imigração Italiana do primeiro número e só então as coisas começaram a fazer sentido. Claro, a força da história da boneca podia muito bem representar o que as demais histórias possuíam: mistério e fé. A lenda é contada oralmente, não há precisão de fatos, pouco se sabe sobre a origem e isso estimula o mistério. E a fé, bom, a fé está no fato de as pessoas acreditarem que a boneca caminha pelo museu à noite, que ela pisca, que ela vira a cabeça. A fé move montanhas e parece que vira a cabeça da boneca também.

Buuu!

A ideia do teaser veio dos filmes de terror como Annabelle e tantos outros em que o artifício comumente usado nestes filmes com bonecos que incorporam a alma de um espírito maligno quase sempre é o fato de que, na segunda vez que você olha para o boneco aparentemente estático, você tem a impressão que ele se mexeu. Por isso a boneca está olhando pra trás; pra você, claro! Assustador, não?


segunda-feira, 22 de julho de 2019

HISTÓRIAS DE MISTÉRIO E FÉ

Mistério e fé são elementos poderosos em qualquer narrativa. A minha cidade possui inúmeros casos com estas características. Duvido que exista outra cidade com tamanha riqueza de casos, lendas e mitos tão diversos e fantásticos como os de Farroupilha. Claro, cidades históricas como Recife, Rio de Janeiro e até Porto Alegre apresentam lendas interessantíssimas. É por isso que minha opinião ganha importância quando coloco as histórias de Farroupilha em uma avaliação per capita e, principalmente, per cuore.


E tudo que um contador de histórias procura é uma boa história para ser repassada, trabalhada, adaptada ou relembrada. Eu faço isso através dos quadrinhos. Poderia ser pelo cinema, pela literatura ou pela fotografia, não importa; o importante é registrá-la para que não se perca no tempo.

O poder da narrativa aproxima as pessoas dos personagens dos contos ou, no caso, da cidade que é o pano de fundo de todas as histórias. Atualmente, este poder possui outro nome: storytelling. Storytelling é uma forma envolvente, relevante e fluida de contar uma história, resultando em uma aproximação emocional entre as partes (neste caso, cidade e cidadão). Mas acho que o principal poder que a contação de histórias proporciona é a inspiração. Escrevi, desenhei e colori estes quadrinhos com o propósito de inspirar os leitores para que eles atentem ao fato de que suas cidades possuem um riquíssimo acervo histórico. Muitas vezes, infelizmente, o acervo é apenas oral e morre com o tempo.

E qual seria o personagem mais misterioso do município de Farroupilha? Quem conhece as lendas e mitos que habitam o imaginário da cidade sabe que se trata da boneca do museu. Afinal, se uma boneca caminha pelo museu à noite, ela merece uma história só pra ela, não acha?


terça-feira, 16 de julho de 2019

O uso de referências nos quadrinhos

A nona arte apresenta uma linguagem dinâmica que permite ao artista aproveitar-se de vários recursos objetivando a construção do significado e, em segundo plano, aplicar referências de autores maiores. As referências engrandecem o trabalho e conversam com o público que possui uma bagagem cultural mais elaborada. Além disso, a referência pode expandir o significado da obra, uma vez que os conceitos que circundam a obra original podem ser reaplicados ou readaptados pelo autor na sua versão, possibilitando uma análise mais profunda. Ainda assim, nem todos os leitores detectam as referências de forma fácil, o que pode ser um problema.

Em "Assim na Serra Como no Céu: a chegada dos imigrantes" usei deste recurso para retratar uma visão panorâmica de Porto Alegre. Como os imigrantes aportaram na capital em 1875, eu precisava mostrar a cidade de alguma forma. Não há muitas fotos deste período e o que pode se fazer é desenhar baseado em outras cidades daquela mesma época. No entanto, descobri um pintor que estava de passagem pela cidade e que elaborou algumas pinturas da cidade e do seu povo.

Pesquisando, descobri o pintor Herrmann Wendroth. Segue apresentação da Wikipedia:

Herrmann Rudolf Wendroth foi um mercenário e artista plástico alemão que veio para o Brasil em 1851, contratado para lutar na Guerra contra Rosas. Integrou a Legião Alemã que serviu no sul, cujos integrantes eram conhecidos pela alcunha de brummers, os "resmungadores".

Chegou ao Rio Grande do Sul por mar, parando primeiro em Rio Grande, e logo seguindo para Pelotas, onde passou preso alguns dias por arruaças. Depois esteve em Porto Alegre, Rio Pardo e Lavras do Sul, onde demorou-se mais explorando ouro nas minas da região.

Dali seguiu em viagem por diversas partes do interior do estado, fixando em aquarelas e desenhos os tipos humanos locais e a paisagem urbana e natural, num documento visual precioso daquela época, executado com grande sensibilidade estética e por vezes mostrando uma veia satírica. Faleceu em torno de 1860.





Esta última pintura eu adaptei para a HQ. Apesar da pintura ser de 1852, acredito que a cidade não tenha mudado a paisagem de forma radical em 20 anos. De qualquer forma, substitui o barco pelo modelo que os imigrantes navegavam.


Este recurso de uso de referências na elaboração de quadrinhos não é novo. Seguem alguns exemplos:

A balsa da Medusa (Géricault, 1819)

Asterix, o Legionário (1967). Por Goscinny e Uderzo. 

Lição de anatomia do Dr. Tulp (1632) de Rembrandt. 

Asterix e o Adivinho (1975). Por Goscinny e Uderzo