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quinta-feira, 5 de setembro de 2019

A LENDA DO EXORCISMO EM CARAVAGGIO

Meu primeiro contato com a história do exorcismo ocorreu em uma visita da escola ao santuário. Naquela manhã, todo o colégio caminhou do centro da cidade até Caravaggio. Devia ser 1986, não tenho certeza. Lembro da sacolinha térmica pendurada no ombro onde levei uma ou duas latas de refrigerante, cuja expectativa em desfrutá-las me acompanhou em todo o trajeto, além de um saco de salgadinho. Dentro da capela, fiquei impressionado e meio chocado com a quantidade de retratos pendurados nas paredes, com as muletas e próteses acumuladas pelos cantos. Era assustador observar os personagens das fotos e os relatos escritos.

Interior da capela ex-votos antes da reforma. Créditos: Porthus Junior
Nisso, uma professora ou integrante do santuário, não lembro, contou a história do exorcismo para o grupo de estudantes presentes. Se eu já estava impressionado com o que vira, fiquei gelado com o que ouvira. O relato era tão fiel que não podia ser mentira. Além do mais, havia prova física da presença do diabo: as grades retorcidas da janela!

Relatos de exorcismo geralmente são seguidos de provas imprecisas. Assim como os  avistamentos de seres extraterrestres, os relatos trazem uma atmosfera, sinais, possibilidades. Nunca provas reais. No máximo, um borrão. E é assim que se constroem mitos: não revelando as verdades. Melhor, contado uma história verossímil, ou seja, que tem todas as características de verdade, mas que não é verdade; parece, apenas. A ficção está repleta de exemplos de peças que levam os incautos a defenderem seus argumentos. Citemos o caso do livro “O Código Da Vinci” de Dan Brown, onde os leitores invadiam as capelas citadas na obra à procura de pistas descritas nos livros. Ou sabemos de fiéis expectadores noveleiros que agridem o ator que interpreta o vilão da novela no supermercado. Realidade e ficção, e a falta da abstração.

Matéria do Jornal Textando

Trecho do livro "Por uma graça alcançada" de Vitor Tonollier
Trecho do livro "Caravaggio: cinquenta anos de trabalho e fé!" de Ivone Foletto Vendrúsculo

A lenda do exorcismo


Possuída por um diabo, uma mulher é levada para a capela (a original, não a atual) em Caravaggio para a seção de exorcismo conduzida pelo padre local. Em alguns dias, o diabo é expulso do corpo e foge pela janela de trás da capela, entortando as grades na fuga.

A reconstrução dessa história deriva de depoimentos dos moradores da localidade, conhecida como Cruzeiro, e de participantes do exorcismo, como o Padre Teodoro Portolan e freiras auxiliares no processo. A lenda ainda traz um motivo para que a possessão do demônio seja justificada: o noivo abandonado havia rogado uma praga para o dia do casamento da moça.

O caso aconteceu em 1947. Não havia, naquela época, profissionais gabaritados para uma avaliação psicológica ou conhecimento suficiente que detectasse algum tipo de doença mental. Os relatos citam que a possuída, que teve que ser conduzida por 5 ou 6 homens devido à força sobrenatural da possessão, passou dias dentro da capela, sem dormir ou se alimentar direito, acompanhada pelo padre, auxiliares e suas rezas.

A adaptação para os quadrinhos


Esta lenda foi transposta para os quadrinhos em função de sua incrível verossimilhança. Ela traz motivos e provas para quase tudo e isso a torna atraente. Além disso, transformei o fato de ter ficado assustado com a história quando criança em motivo para comédia.

Particularmente, acho que o ser humano é suficiente mau para assumir o papel do diabo. Basta abrir um jornal ou acessar conteúdo de sites jornalísticos para constatar as atrocidades que certas pessoas cometem. Mesmo assim, deixei uma ponta aberta na história para que o diabo possa participar, nem que seja como um personagem na cabeça de quem quer acreditar nele. Coloquei uma pista (easter egg) bem discreta sobre o papel do diabo na HQ. Espero que o leitor a encontre. De qualquer forma, na HQ, ele tem um papel importante: abrir e fechar a história.

O fato de ter havido um exorcismo aqui na cidade não poderia passar despercebido. Todo caso de exorcismo traz consigo uma série de elementos emocionais e chocantes que colocam nossa fé à prova. Além disso, o caso é único nesta região. E, claro, oferece a possibilidade de várias interpretações sobre o que realmente aconteceu. Para isso, mantive os elementos centrais da lenda: o motivo, a moça possuída, o padre exorcista, a capela onde ocorre o exorcismo, o processo do exorcismo, as freiras auxiliares, o diabo e a prova da fuga. E acrescentei outros elementos para tornar o enredo mais dinâmico: o desavisado, o coroinha, os colonos. Eles atuam como personagens de apoio para que o enredo se sustente e os diálogos ajudem o leitor a compreender o que cada um dos personagens principais pensa a respeito do acontecimento.

Mas há um ponto de vista interessante: apenas o leitor sabe o que realmente está acontecendo. Ele assiste de camarote o desenrolar dos fatos e, com isso, tento tornar esta “comédia dos erros” mais engraçada.

O fato de que nenhum personagem percebe o que realmente ocorre é a minha crítica.  Defendo que ninguém consegue compreender tudo o que está acontecendo, cada um tem a sua visão do que acontece ao seu redor, levando a pensar e a agir de acordo com a própria percepção parcial. E afirmo ainda que as pessoas, de maneira geral, não querem ou não estão dispostas a buscar a compreensão dos acontecimentos. Se o ser humano é limitado em sua percepção, e percebe esta limitação, não seria seu dever, por instinto humano, buscar a compreensão?

Não se pode acreditar na certeza. É preciso duvidar sempre e pesquisar por conta própria para encontrar a verdade. Ou mais dúvidas. Ou outras possibilidades de compreensão.

O leitor vai confiar nos fatos ou na fé? É preciso acreditar nessa história de exorcismo? A fé em Deus ignora ou inclui a crença no diabo? São histórias que envolvem mistério e fé, não é mesmo? Esta é a essência da HQ.

A adaptação da história leva em conta cada elemento da trama e acrescenta outros objetivando a comédia. Além disso, tratei a trama como uma maneira de rir daquilo que me assustou quando garoto. Ou seja, assim como a lenda é repleta de imprecisões, na minha história, nenhum personagem age corretamente, todos se equivocam. Um personagem compreende errado, o outro pega o livro errado, outro lê errado, outro observa errado, outro está no lugar errado na hora errada.

As referências cinematográficas sobre exorcismo também foram utilizadas no intuito de encontrar correspondência no imaginário do leitor. Detalhe: o exorcismo aconteceu em Caravaggio no ano de 1947, mas as referências foram baseadas no filme “O Exorcista” que seria lançado apenas em 1973.

Cartaz do filme "O Exorcista"
Cena do filme: Personagem escada (à direita) assume o ponto de vista do expectador.

Apenas um personagem age de acordo com o seu papel: o diabo! A única coisa que é incerta da lenda é a certeza desta história. O diabo volta ao final para dar sequência ao seu plano maldito. O mal nunca termina, ele apenas segue o seu curso. 



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